Alci Souza
Folha de São Paulo, terça-feira, 12 de abril de 1983 -
TURFE - ESPORTES - página 23
Senna: apesar da timidez, um modelo de piloto para os
britânicos.
O moço, de jeito modesto,
pode ser um estudante; um jogador de basquete, talvez. Econômico nos gestos e
nas palavras, roupas simples — um agasalho, tênis comuns. Nada de cordões,
pulseiras de ouro; no pulso, só um discreto relógio digital preto. Sua presença
contrasta com o casarão nos confins da avenida Nova Cantareira, guarnecido por
portões automáticos, interfone e cães; com as árvores (dominadas por
dois enormes coqueiros), com os carros alinhados na garagem; com a solenidade
luxuosa e intimidadora da sala.
Esse moço que parece ter
pudor em falar de si próprio e que, com gentil firmeza, passa ao largo de
assuntos pessoais, é um nome consagrado no mundo frenético do automobilismo,
habituado a conviver com os títulos, as taças e a fama: Ayrton Senna,
campeoníssimo das pistas europeias, nome virtualmente certo na próxima
temporada da Fórmula-1
O INCRÍVEL RETROSPECTO
Descansando no Brasil — volta
à Inglaterra no dia 19 — Ayrton tem tido dias movimentados, com uma enorme
agenda de comparecimento em emissoras de rádio e tevê, uma atividade que
conspira contra a recuperação de um problema no nervo ciático, além de uma
gripe que contrabandeou da Europa.
Seu retrospecto nas pistas europeias é uma rotineira sucessão de vitórias, ocasionalmente interrompidas por boas colocações. Em 81, correndo na Fórmula Ford (1.600 cc), colecionou 12
primeiros lugares, seis segundos, um terceiro, um quarto e um quinto —
performance retocada por 13 "poles" oito melhores voltas e cinco
recordes de pista.
No ano seguinte (Fórmula Ford
2.000 cc), disputou 19 provas, Venceu 16, marcou 15 melhores voltas, alcançou
13 "poles" e bateu sete recordes. E os números prosseguem, incríveis.
Ainda em 82, pelo campeonato europeu da categoria, entrou em nove corridas:
seis vitórias, cinco melhores voltas, nove "poles" e cinco recordes.
Ayrton Senna fechou o ano não só detendo o maior número de vitórias na mesma
temporada, como também obtendo cinco consecutivas.
MITO E MÉTODO
Mas o moço com cara de
rapazola oferece uma imagem que parece não combinar direito com o mundo cheio
de "glamour" oferecido pelo "circo" com seus carros de
mecânica sofisticada, as belas mulheres, bares de luxo, hotéis de estrela
máxima.
"Sempre gostei de
carros, desde garoto. Até certa época esse prazer era divido. Minha infância
foi igual a de todo mundo, com figurinhas, balão, bolinha de gude, futebol
(batia com a esquerda). Mas em certo momento, decidi que era imperioso deixar
tudo de lado. Era a dedicação absoluta ou a desistência. Hoje, o automobilismo
significa tudo para mim. O resto é secundário."
Até parece frase decorada. Contudo,
em nome dessa determinação, Ayrton Senna abandonou não apenas a perspectiva de
uma vida abastada, à qual poderia se dedicar plenamente (o casarão, os carros e
a sala solene garantem isso). Ele pôs fim também a uma breve experiência de
casado. E surpreende, ao falar sobre o episódio com a maior naturalidade:
"Não ia dar certo. Era
impossível manter, ao mesmo tempo, uma união sólida, permanente, e continuar
correndo para vencer. Preferi o automobilismo."
UMA CERTA AUDÁCIA
Aos 23 anos, Ayrton Senna é
um piloto que os adversários consideram como modelo. Ele recorda (estreou em
74, na categoria júnior, e em 79, sagrava-se vice do mundo, em Portugal), era
um piloto meio precipitado ("embora longe de me aproximar de Jody
Scheckter"). Andou dando umas batidas. Hoje, ele se considera um corredor
que usa estratégia, prudência e técnica em doses equilibradas, ligeiramente
condimentadas com uma pitada de arrojo.
O temperamento retraído
poderia camuflar uma personalidade fortemente reprimida; sua frieza, um bem-sucedido
disfarce. Não é, porém, a opinião das testemunhas do acidente em que se
envolveu num treino, no ano passado. Pisava fundo quando o carro derrapou e deu
quatro cambalhotas, transformando-se num monte de escombros. Deles emergiu o
piloto, sossegado e ileso, que, após bater a poeira do macacão com as
mãos,pegou outro carro e continuou correndo.
"Sempre me perguntam o
que representa essa vida de correria e sobressaltos. Representa um desafio
ininterrupto e uma satisfação pessoal. Meu limite é o topo — e ainda não
cheguei lá. Para conseguir isso faço qualquer sacrifício. As vitórias seguidas
não desgastam a motivação; cada uma é sempre a renovação de um prazer e da
consciência de que devo vencer mais e sempre. Não posso dormir no ponto: à
minha ré sempre haverá alguém pensando dessa forma."
FONTE PESQUISADA
SOUZA, Alcir. Senna, Um Campeão Tímido e
Humilde. Folha de São Paulo, São Paulo, terça-feira, 12 de abril de 1983,
Turfe, Esportes, p. 23
Nenhum comentário:
Postar um comentário