sábado, 28 de dezembro de 2013

Senna, Um Campeão Tímido e Humilde

Alci Souza

Folha de São Paulo, terça-feira, 12 de abril de 1983 - TURFE - ESPORTES - página 23


Senna: apesar da timidez, um modelo de piloto para os britânicos.


O moço, de jeito modesto, pode ser um estudante; um jogador de basquete, talvez. Econômico nos gestos e nas palavras, roupas simples — um agasalho, tênis comuns. Nada de cordões, pulseiras de ouro; no pulso, só um discreto relógio digital preto. Sua presença contrasta com o casarão nos confins da avenida Nova Cantareira, guarnecido por portões automáticos, interfone e cães; com as árvores (dominadas por dois enormes coqueiros), com os carros alinhados na garagem; com a solenidade luxuosa e intimidadora da sala.
Esse moço que parece ter pudor em falar de si próprio e que, com gentil firmeza, passa ao largo de assuntos pessoais, é um nome consagrado no mundo frenético do automobilismo, habituado a conviver com os títulos, as taças e a fama: Ayrton Senna, campeoníssimo das pistas europeias, nome virtualmente certo na próxima temporada da Fórmula-1

O INCRÍVEL RETROSPECTO

Descansando no Brasil — volta à Inglaterra no dia 19 — Ayrton tem tido dias movimentados, com uma enorme agenda de comparecimento em emissoras de rádio e tevê, uma atividade que conspira contra a recuperação de um problema no nervo ciático, além de uma gripe que contrabandeou da Europa.
Seu retrospecto nas pistas europeias é uma rotineira sucessão de vitórias, ocasionalmente interrompidas por boas colocações. Em 81, correndo na Fórmula Ford (1.600 cc), colecionou 12 primeiros lugares, seis segundos, um terceiro, um quarto e um quinto — performance retocada por 13 "poles" oito melhores voltas e cinco recordes de pista.
No ano seguinte (Fórmula Ford 2.000 cc), disputou 19 provas, Venceu 16, marcou 15 melhores voltas, alcançou 13 "poles" e bateu sete recordes. E os números prosseguem, incríveis. Ainda em 82, pelo campeonato europeu da categoria, entrou em nove corridas: seis vitórias, cinco melhores voltas, nove "poles" e cinco recordes. Ayrton Senna fechou o ano não só detendo o maior número de vitórias na mesma temporada, como também obtendo cinco consecutivas.

MITO E MÉTODO

Mas o moço com cara de rapazola oferece uma imagem que parece não combinar direito com o mundo cheio de "glamour" oferecido pelo "circo" com seus carros de mecânica sofisticada, as belas mulheres, bares de luxo, hotéis de estrela máxima.
"Sempre gostei de carros, desde garoto. Até certa época esse prazer era divido. Minha infância foi igual a de todo mundo, com figurinhas, balão, bolinha de gude, futebol (batia com a esquerda). Mas em certo momento, decidi que era imperioso deixar tudo de lado. Era a dedicação absoluta ou a desistência. Hoje, o automobilismo significa tudo para mim. O resto é secundário."
Até parece frase decorada. Contudo, em nome dessa determinação, Ayrton Senna abandonou não apenas a perspectiva de uma vida abastada, à qual poderia se dedicar plenamente (o casarão, os carros e a sala solene garantem isso). Ele pôs fim também a uma breve experiência de casado. E surpreende, ao falar sobre o episódio com a maior naturalidade:

"Não ia dar certo. Era impossível manter, ao mesmo tempo, uma união sólida, permanente, e continuar correndo para vencer. Preferi o automobilismo."


UMA CERTA AUDÁCIA

Aos 23 anos, Ayrton Senna é um piloto que os adversários consideram como modelo. Ele recorda (estreou em 74, na categoria júnior, e em 79, sagrava-se vice do mundo, em Portugal), era um piloto meio precipitado ("embora longe de me aproximar de Jody Scheckter"). Andou dando umas batidas. Hoje, ele se considera um corredor que usa estratégia, prudência e técnica em doses equilibradas, ligeiramente condimentadas com uma pitada de arrojo.

O temperamento retraído poderia camuflar uma personalidade fortemente reprimida; sua frieza, um bem-sucedido disfarce. Não é, porém, a opinião das testemunhas do acidente em que se envolveu num treino, no ano passado. Pisava fundo quando o carro derrapou e deu quatro cambalhotas, transformando-se num monte de escombros. Deles emergiu o piloto, sossegado e ileso, que, após bater a poeira do macacão com as mãos,pegou outro carro e continuou correndo.

"Sempre me perguntam o que representa essa vida de correria e sobressaltos. Representa um desafio ininterrupto e uma satisfação pessoal. Meu limite é o topo — e ainda não cheguei lá. Para conseguir isso faço qualquer sacrifício. As vitórias seguidas não desgastam a motivação; cada uma é sempre a renovação de um prazer e da consciência de que devo vencer mais e sempre. Não posso dormir no ponto: à minha ré sempre haverá alguém pensando dessa forma."


FONTE PESQUISADA

SOUZA, Alcir. Senna, Um Campeão Tímido e Humilde. Folha de São Paulo, São Paulo, terça-feira, 12 de abril de 1983, Turfe, Esportes, p. 23




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