terça-feira, 15 de abril de 2014

A Decepção de Ayrton Senna Por Perder O Mundial de Kart 1979

Extraído do Livro Português: A Paixão de Senna do jornalista Rui Pelejão
Lançamento Ano 2014 - Editora: Oficina do Livro

Ayrton Senna após ter pedido o título mundial de Kart 1979
Foto: Reprodução / Documentário Ayrton Senna do Brasil

A primeira página da história de Ayrton Senna da Silva em
Portugal também começou a ser escrita no Autódromo do Estoril
naquela tarde do dia 24 de setembro de 1979.
Como na letra da música de Vítor Espadinha «foi em setembro
que te conheci.» Aquele domingo seria o primeiro de muitos
domingos de alegrias dadas aos adeptos portugueses pelo franzino
e tímido menino do bairro do Tremembé, em São Paulo.
O campeão que não foi
Ayrton Senna da Silva não era propriamente um desconhecido
para os adeptos do karting. O jovem piloto brasileiro, então com
apenas 19 anos, fora eleito «Piloto Revelação» no primeiro mundial
que disputou em 1978 num kartódromo desenhado na pista
de Le Mans, onde um excesso de confiança numa travagem para lá
dos manuais de física lhe roubou o título.
Agora, mais rodado e mimado como a nova coqueluche da equipa
de fábrica dos irmãos Parilla, Ayrton era elencado como um dos
favoritos à vitória no Estoril, juntamente com o seu companheiro de
equipa e arquirrival, o veterano Terry Fullerton (campeão em 1973);
o norte-americano e campeão em título, com um nome convenientemente
adequado à competição, Lake Speed; os holandeses Peter de
Bruyn e Peter Koene; os britânicos Mickey Allen e Mike Wilson (que
viria mais tarde a ser um papa-mundiais de karting, com um recorde
de seis taças); os austríacos Toni Zoseri e Max Lauda (primo de Niki
Lauda, que venceria o primeiro GP de F1 do Estoril, cinco anos mais
tarde) ou até a francesa Cathy Muller, irmã mais velha daquele que
viria a ser um grande campeão do WTCC, Yvan Muller.
Em resumo, o desporto automóvel sempre foi uma pequena
grande família.
Naquele campeonato marcava presença a fina flor do karting
mundial que durante quatro dias se digladiou nas manches eliminatórias
na pista improvisada, utilizando parte do paddock e do
pit lane.
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Com menos experiência e material inferior, a comitiva portuguesa
tinha ficado pelo caminho nas fases eliminatórias, em que,
pela primeira e rara vez, pilotos portugueses defrontaram Ayrton
Senna em pista.
Com as maiores esperanças portuguesas – como Figueiredo
e Silva ou Gêhéfe – a serem afastadas nas encarniçadas batalhas
campais das eliminatórias, o público que enchia as bancadas tratou
rapidamente de escolher o seu paladino na liça – que isto de ver
desporto sem torcer por ninguém tem tanta graça como uma reunião
de condomínio ou comer arroz branco.
Este paladino distinguia-se bem em pista pelo seu vistoso estilo
de pilotagem e pelo capacete amarelo de riscas verdes, desenhado
pelo célebre Sid Mosca, que reluzia no meio do pelotão, permitindo
ao público identificar o seu piloto dileto naquela e em muitas
outras tardes que se seguiriam na década de 1980.
Vítor Abreu, jornalista do Autosport destacado para a reportagem
do Estoril, juntamente com José Vieira e Dina Lopes, recorda
o entusiasmo do público a cada frenética passagem de Ayrton: «Era
incrível ver como a multidão reconhecia o Senna, celebrando cada
ultrapassagem como se fosse um golo num jogo de futebol. No
meio daquelas molhadas, Ayrton Senna destacava-se pela bravura
com que disputava cada posição e também pelo mítico capacete
amarelo. Um contraste total com o rapaz discreto, compenetrado
e tímido que passava no paddock com o seu facto preto e capacete
pendurado na mão. Mas, mesmo assim, e com apenas 19 anos, já
transmitia uma certa aura de campeão.»
Um campeão adiado, pelo menos no karting, disciplina onde
competiu dez anos, sem nunca ter conquistado o título mundial,
dissabor que acompanhou Ayrton pela vida fora. No Estoril, Senna
experimentaria pela primeira vez a desilusão de se ver arredado de
uma vitória em pista por uma questão regulamentar.
O brasileiro sentia-se vítima de uma injustiça, mas a verdade é
que «os regulamentos são para ler antes, não depois», como ironizou
o chefe da comitiva brasileira e presidente da Comissão de
Kart da Confederação Brasileira de Automobilismo, Rubens Carpinelli,
dirigente que não morria de amores pelo piloto brasileiro
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(o sentimento era recíproco), como se pode depreender pelo depoimento
dado ao jornalista Francisco Santos no seu livro Ayrton
Senna – Saudade: «As participações do Ayrton Senna em campeonatos
mundiais de karting foram frustrantes para ele, por não ter
conseguido o título de campeão mundial do esporte que adorava.
O Ayrton disputava os campeonatos em nome do Brasil, mas
nunca participou efetivamente da equipe brasileira. Dois foram os
motivos desse afastamento: seu génio individualista e a sua condição
de piloto oficial da fábrica DAP. Sua participação na equipe
brasileira se resumia à apresentação dos países participantes.
Nunca compartilhou das boxes da equipe do Brasil. Em Le Mans
(1978) sequer respeitou o seu companheiro de equipe (Mário Sérgio
de Carvalho) alijando-o da prova […]. No campeonato realizado
no Estoril jogou fora o título ao bater no seu companheiro de
equipe na DAP (Fullerton).»
Ayrton Senna acabaria por perder o título nas eliminatórias de
domingo de manhã, mas só o saberia depois de festejar efusivamente
após levar a bandeira de xadrez na finalíssima.
As eliminatórias não tinham corrido nada bem ao seu companheiro
de equipa Terry Fullerton, que, numa delas, ficou fulo com
um espectador espanhol que aplaudia e gozava de pé quando o
motor do kart do inglês entregou a alma ao criador.
O irado piloto perdeu as estribeiras; arremessou o capacete ao
adepto espanhol; preparava-se para lhe aplicar um corretivo mais
completo, não fosse travado pelos comissários de pista. Não seria
o último britânico irascível a atravessar-se na carreira de Senna.
Já com 30 anos e consagrado campeão de karting, Fullerton precisava
de um bom resultado na quarta eliminatória para se classificar
para as finais.
Ainda que contrariado, Senna, que dominou as suas eliminatórias,
concedeu em fazer o jeito ao seu colega de equipa, como explicou
a reportagem do Autosport: «Uma manche de peso. Fullerton,
Senna da Silva, Allen e Wilson ocupavam as duas primeiras linhas
da grelha de partida. […] Senna da Silva tomou a dianteira, seguido
de Fullerton, mas, na terceira volta, deixou passar o piloto britânico
para o primeiro lugar. Era uma pura manobra tática de jogo
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de equipa de fábrica, uma vez que os dois pilotos correm pela DAP.
No entanto, Senna da Silva cometeu o erro que no final do dia se
viria a revelar bastante grave. Da Silva colou-se a Fullerton e quando
este gripou o motor na reta que antecede a curva do bar e lhe
barrou o caminho o brasileiro saiu fora de pista juntamente com
Fullerton, que provavelmente terá sentido o seu motor a gripar e
avisou tardiamente Senna da Silva. O piloto brasileiro pôde continuar
a prova, mas os primeiros já estavam longe e os pontos perdidos
nesta manche viriam a mostrar-se preciosos para o desempate
final com Kone.»
Independentemente do resultado e da polémica final, a verdade é
que Senna da Silva – como então era conhecido – foi a estrela mais
cintilante nas três finais disputadas na tarde de domingo, oferecendo
grandes duelos com os holandeses Peter de Bruyn e Peter Kone.
Na primeira final, partindo do quarto lugar, Senna da Silva
ganha sucessivamente posições para gáudio dos adeptos, até tomar
de assalto a liderança de Peter de Bruyn logo na quarta volta.
O brasileiro mantém a liderança até à décima volta, impressionando
o público pela acrobática capacidade de fazer curvas a alta
velocidade apenas com uma mão no volante – a esquerda – já que
era canhoto.
Com a mão direita, Senna tapava a refrigeração do carburador,
uma técnica de pilotos de karting para manter a temperatura ideal
de carburação, mas que ninguém tinha coragem de fazer nas curvas,
sob o risco de perder precisão e controlo do kart – só Senna se
atrevia a esta gracinha.
Apesar da eficácia dessa técnica, Senna acabaria por cometer
um erro que lhe custou a vitória nessa primeira manche, vencida
por Peter de Bruyn.
Às 18 horas e com pateada e assobios do público iniciava-se a
segunda manche das finais, com um atraso tipicamente português
de uma hora e meia. A corrida começa como acabara a anterior,
com Bruyn na liderança e restante pelotão ao ataque.
Na décima segunda volta a correia do kart do holandês parte-se,
obrigando o piloto a assistir ao resto da corrida na relva, a ver a
banda passar.
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Senna da Silva salta para a liderança que não conseguiu conservar
até à bandeira de xadrez, já que perto do fim foi ultrapassado
por outro holandês voador – Peter Kone.
Já caía a noite no ventoso Autódromo do Estoril quando se deu
a partida para a terceira e última manche, autêntico recital de pilotagem
de Senna da Silva, a fazer fé na reportagem do jornal Motor,
assinada por Olavo Martins e Luís Netto Rocha, que não poupava
elogios ao fenómeno paulista: «Ayrton Senna da Silva. Um brasileiro
endiabrado, bem na senda da escola a que o Brasil nos habituou,
que fez levantar as bancadas do autódromo com as suas ultrapassagens
temerárias. Com o sol a pôr-se no horizonte, pois eram 19
horas, foi baixada a bandeira de partida para a última manche do
campeonato. Schurman partiu à frente e de novo Sena da Silva vem
desde a quarta posição até ao primeiro lugar que ocupa desde a
quiinta volta e até final. Corrida disputadíssima, várias vezes fez
levantar o público das bancadas.»
Ao vencer a terceira manche, e dados os resultados obtidos nas
finais, Senna da Silva cruzou a meta de punho vitorioso erguido no
ar, mítico gesto que repetiria 41 vezes na F1, convencido de que era
o novo campeão do mundo de karting, apesar de terminar o campeonato
em igualdade pontual com Peter Kone.
O público nas bancadas acompanhou a festa do brasileiro, mas
a crua verdade é que o campeão era outro, como explicava o Motor
aos seus leitores mais distraídos: «Guindou-se ao primeiro lugar
na manche final. Facto infelizmente insuficiente para o consagrar
campeão do mundo, pois acabou empatado em pontos com Peter
Kone, atual campeão, sendo o desempate feito pelas classificações
das eliminatórias, onde este obteve melhor pontuação. Estamos
aliás em crer que muita gente que esteve no Autódromo vai ter
uma desilusão, pois não se aperceberam deste pormenor subtil que
ditou o segundo lugar a Senna da Silva; diga-se de passagem que o
próprio piloto não sabia deste detalhe importantíssimo.»
Para um piloto que anos mais tarde defenderia que «o segundo
lugar é o primeiro dos últimos. Vencer é o que importa, o resto
é consequência», a derrota no Estoril custou a digerir. Foi, aliás, a
vez que esteve mais próximo de ser campeão do mundo de karting,
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sonho que nunca viria a concretizar, sendo o eterno segundo, um
duplo vice-campeão mundial da modalidade em que competiu dez
anos ao mais alto nível.
Mas, naquele final de tarde de domingo de setembro de 1979,
Senna da Silva não se sentia derrotado, sentia-se injustiçado e desiludido,
o que se percebe pelo seu desabafo ao jornal Motor, naquela
que terá sido a primeira entrevista do piloto brasileiro a um
jornal português.
Vale a pena recordar:

Motor – «Sena» da Silva, como lhe correu este campeonato do
mundo de 79? Você foi quase campeão.
Senna da Silva – Pois é cara, eu devia ser mesmo campeão, mas
não sou porque o regulamento está mal feito. Não compreendo como
é que vão buscar o resultado de uma eliminatória que tem menos
valor, e não contam com o resultado de uma final, que é muito mais
importante. Se fosse o desempate feito com o resultado da final que
nós não aproveitamos, o que dava certo, o campeão seria eu.
M – Mas aí a organização da prova não tem culpa.
SS – Para mim acho que tem, porque o director da prova, o sr.
Martins, é membro da CIK (Comissão Internacional de Karting) e
nessa qualidade não devia deixar que se fizessem coisas como esta.
Para mim está muito mal. O Kone andou muito bem, é bom piloto,
mas eu merecia ganhar.
M – «Sena», qual é a sua opinião da pista e da organização?
SS – A pista está muito boa. É muito difícil, mas o traçado é
muito bom. O piso é formidável, pois não se estraga com o calor e
o atrito dos pneus.
M – Mas há uns quantos ressaltos que por vezes alteram as trajetórias.
SS – Isso não é nada, pois a gente aqui faz um montão de corridas
e não fica machucado. Só na entrada e saída da recta da meta
há o ressalto que chateia um pouquinho, mas não dá para machucar.
Há pista na Europa onde a gente depois de uma corrida tem de
ir direito para o hospital porque está mesmo machucado de verdade.
Quanto à organização não foi muito má, mas aborreceu muito
o pessoal porque não respeitou o horário.

Senna da Silva sem papas na língua a não poupar críticas à
Comissão de Karting da então Fereração Internacional do Desporto
Automóvel (FISA), entidade com quem viria, anos mais tarde, a
alimentar uma guerra surda que quase o levou a abandonar a Fórmula
1, após os infames incidentes de Suzuka com Alain Prost nos
Grandes Prémios do Japão de 1989 e de 1990.

Mas aqui, no Estoril, Senna da Silva ainda estava longe dos
holofotes da fama e das manobras do todo-poderoso presidente da
Federação, Jean-Marie Balestre.

Os entusiastas portugueses presentes nesse mundial de karting
ficaram com o nome de Senna da Silva gravado na memória, mas
seriam necessários mais cinco anos para o endiabrado brasileiro
regressar ao Autódromo do Estoril e se transformar no maior fenómeno
de popularidade de um desportista estrangeiro no nosso país.
Quem esteve naquela tarde de setembro nas bancadas do Estoril
assistiu a um momento histórico, ainda que sem o saber.



FONTE PESQUISADA

Disponível em: <http://recursos.wook.pt/recurso?id=9647687>. Acesso em: 15 de abril 2014.


FOTOS AYRTON SENNA NO KART













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