Extraído do Livro Português: A Paixão de Senna do
jornalista Rui Pelejão
Lançamento Ano 2014 - Editora: Oficina do Livro
Ayrton Senna após ter pedido o título mundial de Kart 1979
Foto: Reprodução / Documentário Ayrton Senna do Brasil
A primeira página da história
de Ayrton Senna da Silva em
Portugal também começou a ser
escrita no Autódromo do Estoril
naquela tarde do dia 24 de
setembro de 1979.
Como na letra da música de
Vítor Espadinha «foi em setembro
que te conheci.» Aquele
domingo seria o primeiro de muitos
domingos de alegrias dadas
aos adeptos portugueses pelo franzino
e tímido menino do bairro do
Tremembé, em São Paulo.
O campeão que não foi
Ayrton Senna da Silva não era
propriamente um desconhecido
para os adeptos do karting. O
jovem piloto brasileiro, então com
apenas 19 anos, fora eleito
«Piloto Revelação» no primeiro mundial
que disputou em 1978 num
kartódromo desenhado na pista
de Le Mans, onde um excesso
de confiança numa travagem para lá
dos manuais de física lhe
roubou o título.
Agora, mais rodado e mimado
como a nova coqueluche da equipa
de fábrica dos irmãos
Parilla, Ayrton era elencado como um dos
favoritos à vitória no
Estoril, juntamente com o seu companheiro de
equipa e arquirrival, o
veterano Terry Fullerton (campeão em 1973);
o norte-americano e campeão
em título, com um nome convenientemente
adequado à competição, Lake
Speed; os holandeses Peter de
Bruyn e Peter Koene; os
britânicos Mickey Allen e Mike Wilson (que
viria mais tarde a ser um papa-mundiais
de karting, com um recorde
de seis taças); os austríacos
Toni Zoseri e Max Lauda (primo de Niki
Lauda, que venceria o
primeiro GP de F1 do Estoril, cinco anos mais
tarde) ou até a francesa
Cathy Muller, irmã mais velha daquele que
viria a ser um grande campeão
do WTCC, Yvan Muller.
Em resumo, o desporto
automóvel sempre foi uma pequena
grande família.
Naquele campeonato marcava
presença a fina flor do karting
mundial que durante quatro
dias se digladiou nas manches eliminatórias
na pista improvisada,
utilizando parte do paddock e do
pit lane.
rui pelejão
22
Com menos experiência e
material inferior, a comitiva portuguesa
tinha ficado pelo caminho nas
fases eliminatórias, em que,
pela primeira e rara vez,
pilotos portugueses defrontaram Ayrton
Senna em pista.
Com as maiores esperanças
portuguesas – como Figueiredo
e Silva ou Gêhéfe – a serem
afastadas nas encarniçadas batalhas
campais das eliminatórias, o
público que enchia as bancadas tratou
rapidamente de escolher o seu
paladino na liça – que isto de ver
desporto sem torcer por
ninguém tem tanta graça como uma reunião
de condomínio ou comer arroz
branco.
Este paladino distinguia-se
bem em pista pelo seu vistoso estilo
de pilotagem e pelo capacete
amarelo de riscas verdes, desenhado
pelo célebre Sid Mosca, que
reluzia no meio do pelotão, permitindo
ao público identificar o seu
piloto dileto naquela e em muitas
outras tardes que se
seguiriam na década de 1980.
Vítor Abreu, jornalista do Autosport
destacado para a reportagem
do Estoril, juntamente com
José Vieira e Dina Lopes, recorda
o entusiasmo do público a
cada frenética passagem de Ayrton: «Era
incrível ver como a multidão
reconhecia o Senna, celebrando cada
ultrapassagem como se fosse
um golo num jogo de futebol. No
meio daquelas molhadas,
Ayrton Senna destacava-se pela bravura
com que disputava cada
posição e também pelo mítico capacete
amarelo. Um contraste total
com o rapaz discreto, compenetrado
e tímido que passava no paddock
com o seu facto preto e capacete
pendurado na mão. Mas, mesmo
assim, e com apenas 19 anos, já
transmitia uma certa aura de
campeão.»
Um campeão adiado, pelo menos
no karting, disciplina onde
competiu dez anos, sem nunca
ter conquistado o título mundial,
dissabor que acompanhou
Ayrton pela vida fora. No Estoril, Senna
experimentaria pela primeira
vez a desilusão de se ver arredado de
uma vitória em pista por uma
questão regulamentar.
O brasileiro sentia-se vítima
de uma injustiça, mas a verdade é
que «os regulamentos são para
ler antes, não depois», como ironizou
o chefe da comitiva
brasileira e presidente da Comissão de
Kart da Confederação
Brasileira de Automobilismo, Rubens Carpinelli,
dirigente que não morria de
amores pelo piloto brasileiro
a paixão de senna
23
(o sentimento era recíproco),
como se pode depreender pelo depoimento
dado ao jornalista Francisco
Santos no seu livro Ayrton
Senna – Saudade: «As
participações do Ayrton Senna em campeonatos
mundiais de karting foram
frustrantes para ele, por não ter
conseguido o título de
campeão mundial do esporte que adorava.
O Ayrton disputava os
campeonatos em nome do Brasil, mas
nunca participou efetivamente
da equipe brasileira. Dois foram os
motivos desse afastamento:
seu génio individualista e a sua condição
de piloto oficial da fábrica
DAP. Sua participação na equipe
brasileira se resumia à
apresentação dos países participantes.
Nunca compartilhou das boxes
da equipe do Brasil. Em Le Mans
(1978) sequer respeitou o seu
companheiro de equipe (Mário Sérgio
de Carvalho) alijando-o da
prova […]. No campeonato realizado
no Estoril jogou fora o
título ao bater no seu companheiro de
equipe na DAP (Fullerton).»
Ayrton Senna acabaria por
perder o título nas eliminatórias de
domingo de manhã, mas só o
saberia depois de festejar efusivamente
após levar a bandeira de
xadrez na finalíssima.
As eliminatórias não tinham
corrido nada bem ao seu companheiro
de equipa Terry Fullerton,
que, numa delas, ficou fulo com
um espectador espanhol que
aplaudia e gozava de pé quando o
motor do kart do inglês
entregou a alma ao criador.
O irado piloto perdeu as
estribeiras; arremessou o capacete ao
adepto espanhol; preparava-se
para lhe aplicar um corretivo mais
completo, não fosse travado
pelos comissários de pista. Não seria
o último britânico irascível
a atravessar-se na carreira de Senna.
Já com 30 anos e consagrado
campeão de karting, Fullerton precisava
de um bom resultado na quarta
eliminatória para se classificar
para as finais.
Ainda que contrariado, Senna,
que dominou as suas eliminatórias,
concedeu em fazer o jeito ao
seu colega de equipa, como explicou
a reportagem do Autosport:
«Uma manche de peso. Fullerton,
Senna da Silva, Allen e
Wilson ocupavam as duas primeiras linhas
da grelha de partida. […]
Senna da Silva tomou a dianteira, seguido
de Fullerton, mas, na
terceira volta, deixou passar o piloto britânico
para o primeiro lugar. Era
uma pura manobra tática de jogo
rui pelejão
24
de equipa de fábrica, uma vez
que os dois pilotos correm pela DAP.
No entanto, Senna da Silva
cometeu o erro que no final do dia se
viria a revelar bastante
grave. Da Silva colou-se a Fullerton e quando
este gripou o motor na reta
que antecede a curva do bar e lhe
barrou o caminho o brasileiro
saiu fora de pista juntamente com
Fullerton, que provavelmente
terá sentido o seu motor a gripar e
avisou tardiamente Senna da
Silva. O piloto brasileiro pôde continuar
a prova, mas os primeiros já
estavam longe e os pontos perdidos
nesta manche viriam a
mostrar-se preciosos para o desempate
final com Kone.»
Independentemente do
resultado e da polémica final, a verdade é
que Senna da Silva – como
então era conhecido – foi a estrela mais
cintilante nas três finais
disputadas na tarde de domingo, oferecendo
grandes duelos com os
holandeses Peter de Bruyn e Peter Kone.
Na primeira final, partindo
do quarto lugar, Senna da Silva
ganha sucessivamente posições
para gáudio dos adeptos, até tomar
de assalto a liderança de
Peter de Bruyn logo na quarta volta.
O brasileiro mantém a
liderança até à décima volta, impressionando
o público pela acrobática
capacidade de fazer curvas a alta
velocidade apenas com uma mão
no volante – a esquerda – já que
era canhoto.
Com a mão direita, Senna
tapava a refrigeração do carburador,
uma técnica de pilotos de karting
para manter a temperatura ideal
de carburação, mas que
ninguém tinha coragem de fazer nas curvas,
sob o risco de perder
precisão e controlo do kart – só Senna se
atrevia a esta gracinha.
Apesar da eficácia dessa
técnica, Senna acabaria por cometer
um erro que lhe custou a
vitória nessa primeira manche, vencida
por Peter de Bruyn.
Às 18 horas e com pateada e
assobios do público iniciava-se a
segunda manche das finais,
com um atraso tipicamente português
de uma hora e meia. A corrida
começa como acabara a anterior,
com Bruyn na liderança e
restante pelotão ao ataque.
Na décima segunda volta a
correia do kart do holandês parte-se,
obrigando o piloto a assistir
ao resto da corrida na relva, a ver a
banda passar.
a paixão de senna
25
Senna da Silva salta para a
liderança que não conseguiu conservar
até à bandeira de xadrez, já
que perto do fim foi ultrapassado
por outro holandês voador –
Peter Kone.
Já caía a noite no ventoso
Autódromo do Estoril quando se deu
a partida para a terceira e
última manche, autêntico recital de pilotagem
de Senna da Silva, a fazer fé
na reportagem do jornal Motor,
assinada por Olavo Martins e
Luís Netto Rocha, que não poupava
elogios ao fenómeno paulista:
«Ayrton Senna da Silva. Um brasileiro
endiabrado, bem na senda da
escola a que o Brasil nos habituou,
que fez levantar as bancadas
do autódromo com as suas ultrapassagens
temerárias. Com o sol a
pôr-se no horizonte, pois eram 19
horas, foi baixada a bandeira
de partida para a última manche do
campeonato. Schurman partiu à
frente e de novo Sena da Silva vem
desde a quarta posição até ao
primeiro lugar que ocupa desde a
quiinta volta e até final.
Corrida disputadíssima, várias vezes fez
levantar o público das
bancadas.»
Ao vencer a terceira manche, e
dados os resultados obtidos nas
finais, Senna da Silva cruzou
a meta de punho vitorioso erguido no
ar, mítico gesto que
repetiria 41 vezes na F1, convencido de que era
o novo campeão do mundo de karting,
apesar de terminar o campeonato
em igualdade pontual com
Peter Kone.
O público nas bancadas
acompanhou a festa do brasileiro, mas
a crua verdade é que o
campeão era outro, como explicava o Motor
aos seus leitores mais
distraídos: «Guindou-se ao primeiro lugar
na manche final. Facto
infelizmente insuficiente para o consagrar
campeão do mundo, pois acabou
empatado em pontos com Peter
Kone, atual campeão, sendo o
desempate feito pelas classificações
das eliminatórias, onde este
obteve melhor pontuação. Estamos
aliás em crer que muita gente
que esteve no Autódromo vai ter
uma desilusão, pois não se
aperceberam deste pormenor subtil que
ditou o segundo lugar a Senna
da Silva; diga-se de passagem que o
próprio piloto não sabia
deste detalhe importantíssimo.»
Para um piloto que anos mais
tarde defenderia que «o segundo
lugar é o primeiro dos
últimos. Vencer é o que importa, o resto
é consequência», a derrota no
Estoril custou a digerir. Foi, aliás, a
vez que esteve mais próximo
de ser campeão do mundo de karting,
rui pelejão
26
sonho que nunca viria a
concretizar, sendo o eterno segundo, um
duplo vice-campeão mundial da
modalidade em que competiu dez
anos ao mais alto nível.
Mas, naquele final de tarde
de domingo de setembro de 1979,
Senna da Silva não se sentia
derrotado, sentia-se injustiçado e desiludido,
o que se percebe pelo seu
desabafo ao jornal Motor, naquela
que terá sido a primeira
entrevista do piloto brasileiro a um
jornal português.
Vale a pena recordar:
Motor – «Sena» da Silva, como
lhe correu este campeonato do
mundo de 79? Você foi quase
campeão.
Senna da Silva – Pois é cara,
eu devia ser mesmo campeão, mas
não sou porque o regulamento
está mal feito. Não compreendo como
é que vão buscar o resultado
de uma eliminatória que tem menos
valor, e não contam com o
resultado de uma final, que é muito mais
importante. Se fosse o
desempate feito com o resultado da final que
nós não aproveitamos, o que
dava certo, o campeão seria eu.
M – Mas aí a organização da
prova não tem culpa.
SS – Para mim acho que tem,
porque o director da prova, o sr.
Martins, é membro da CIK
(Comissão Internacional de Karting) e
nessa qualidade não devia
deixar que se fizessem coisas como esta.
Para mim está muito mal. O
Kone andou muito bem, é bom piloto,
mas eu merecia ganhar.
M – «Sena», qual é a sua
opinião da pista e da organização?
SS – A pista está muito boa.
É muito difícil, mas o traçado é
muito bom. O piso é
formidável, pois não se estraga com o calor e
o atrito dos pneus.
M – Mas há uns quantos
ressaltos que por vezes alteram as trajetórias.
SS – Isso não é nada, pois a
gente aqui faz um montão de corridas
e não fica machucado. Só na
entrada e saída da recta da meta
há o ressalto que chateia um
pouquinho, mas não dá para machucar.
Há pista na Europa onde a
gente depois de uma corrida tem de
ir direito para o hospital
porque está mesmo machucado de verdade.
Quanto à organização não foi
muito má, mas aborreceu muito
o pessoal porque não
respeitou o horário.
Senna da Silva sem papas na
língua a não poupar críticas à
Comissão de Karting da então
Fereração Internacional do Desporto
Automóvel (FISA), entidade
com quem viria, anos mais tarde, a
alimentar uma guerra surda
que quase o levou a abandonar a Fórmula
1, após os infames incidentes
de Suzuka com Alain Prost nos
Grandes Prémios do Japão de
1989 e de 1990.
Mas aqui, no Estoril, Senna
da Silva ainda estava longe dos
holofotes da fama e das
manobras do todo-poderoso presidente da
Federação, Jean-Marie Balestre.
Os entusiastas portugueses
presentes nesse mundial de karting
ficaram com o nome de Senna
da Silva gravado na memória, mas
seriam necessários mais cinco
anos para o endiabrado brasileiro
regressar ao Autódromo do
Estoril e se transformar no maior fenómeno
de popularidade de um
desportista estrangeiro no nosso país.
Quem esteve naquela tarde de
setembro nas bancadas do Estoril
assistiu a um momento
histórico, ainda que sem o saber.
FONTE PESQUISADA
Nenhum comentário:
Postar um comentário